Pelo(então
Cardeal) J. Ratzinger
aos Catequistas
e Professores de Religião e Moral
A vida humana não se realiza por si só. A nossa vida
é uma questão aberta, um projecto incompleto que ainda deve ser terminado e
realizado. A pergunta fundamental de cada homem é: como se realiza isto
tornar-se homem? Como se aprende a arte de viver? Qual é o caminho da
felicidade? Evangelizar significa mostrar este caminho. Jesus diz no início da
sua vida pública: Vim para evangelizar os pobres (cf. Lc 4, 18); isto significa:
eu tenho a resposta para a vossa pergunta fundamental; eu indico-vos o caminho
da vida, o caminho da felicidade ou melhor: eu sou esse caminho. A maior pobreza
é a incapacidade de alegria, o tédio da vida considerada absurda e
contraditória. Esta pobreza hoje está muito difundida, em formas muito
diferentes, quer nas sociedades materialmente ricas quer também nos países
pobres. A incapacidade de alegria supõe e causa a incapacidade de amar, inveja,
avareza todos estes são vícios que devastam a vida dos indivíduos e o mundo. Eis
por que precisamos de uma nova evangelização se a arte de viver permanece
desconhecida, tudo o mais deixa de funcionar. Mas esta arte não é objecto da
ciência esta arte só pode ser comunicada por quem tem a vida aquele que é o
Evangelho em pessoa.
I. Estrutura e método na nova
evangelização
1. A
estrutura
Antes de falar dos conteúdos fundamentais da nova
evangelização desejaria dizer uma palavra acerca da sua estrutura e método
adequados. A Igreja evangeliza sempre e jamais interrompeu o caminho da
evangelização. Celebra todos os dias o mistério eucarístico, administra os
sacramentos, anuncia a palavra da vida a palavra de Deus, empenha-se pela
justiça e pela caridade. E esta evangelização dá frutos: produz luz e alegria,
dá o caminho da vida a muitas pessoas; há quem viva, muitas vezes sem saber, da
luz e do calor resplandecente desta evangelização permanente. Contudo,
observamos um processo progressivo e preocupante de descristianização e de perda
dos valores humanos essenciais. Uma boa parte da humanidade de hoje não encontra
na evangelização permanente da Igreja o Evangelho, ou seja, uma resposta
convincente à pergunta: como viver? Eis por que procuramos, além da
evangelização permanente, jamais interrompida e que nunca se deve deter, uma
nova evangelização, capaz de se fazer ouvir por aquele mundo que não encontra o
acesso à evangelização "clássica". Todos têm necessidade do Evangelho; o
Evangelho destina-se a todos e não apenas a um círculo determinado, e portanto
somos obrigados a procurar novos caminhos para levar o Evangelho a todos. Mas
também se esconde nisto uma tentação a tentação da impaciência, a tentação de
procurar imediatamente o grande sucesso, de procurar os grandes números. E este
não é o método de Deus. Para o reino de Deus e a evangelização, instrumento e
veículo do reino de Deus, é sempre válida a parábola do grão de mostarda (cf. Mc
31-32). O reino de Deus recomeça sempre de novo sob este sinal. Nova
evangelização não pode significar: atrair imediatamente com novos métodos mais
requintados as grandes multidões que se afastaram da Igreja. Não é esta a
promessa da nova evangelização. Nova evangelização significa: não contentar-se
com o facto de que do grão de mostarda cresceu a grande árvore da Igreja
universal, não pensar que é suficiente que nos seus ramos muito diferentes as
aves possam encontrar lugar mas ousar de novo com a humildade do pequeno grão,
deixando para Deus quando e como crescerá (cf. Mc 4, 26-29). As grandes coisas
começam sempre do pequeno grão e os movimentos em massa são sempre efémeros. Na
sua visão do processo da evolução, Teilhard de Chardin fala do "branco das
origens" (le blanc des origines): o início das novas espécies é invisível e a
investigação científica não o pode encontrar. As fontes são escondidas muito
pequenas. Por outras palavras: as grandes realidades iniciam-se em humildade.
Deixemos de lado se e até que ponto Teilhard tem razão com as suas teorias
evolucionistas; a lei das origens invisíveis diz uma verdade uma verdade
presente precisamente no agir de Deus na história: "Não te elegi porque és
grande, ao contrário és o mais pequeno de entre os povos; elegi-te porque te
amo...", diz Deus ao povo de Israel no Antigo Testamento e exprime desta forma o
paradoxo fundamental da história da salvação: sem dúvida, Deus não conta com os
grandes números; o poder exterior não é o sinal da sua presença. Grande parte
das parábolas de Jesus indica esta estrutura do agir divino e responde desta
forma às preocupações dos discípulos, os quais esperavam outro tipo de sucesso e
de sinais do Messias sucessos do género dos que Satanás ofereceu ao Senhor:
dou-te todos os reinos do mundo tudo isto... (cf. Mt 4, 9). Sem dúvida, Paulo,
no final da sua vida, teve a impressão de ter levado o Evangelho aos confins da
terra, mas os cristãos eram pequenas comunidades espalhadas no mundo,
insignificantes segundo os critérios seculares. Na realidade foram o germe que
penetrou na massa a partir de dentro e levaram em si o futuro do mundo (cf. Mt
13, 33). Um antigo provérbio diz: "Sucesso não é um nome de Deus". A nova
evangelização deve submeter-se ao mistério do grão de mostarda e não pretender
produzir imediatamente a grande árvore. Nós ou vivemos demasiado na certeza da
grande árvore que já existe ou na impaciência de possuir uma árvore maior, mais
vital ao contrário, devemos aceitar o mistério que a Igreja é ao mesmo tempo
grande árvore e pequeníssimo grão. Na história da salvação é sempre Sexta-Feira
Santa e, simultaneamente, Domingo de Páscoa...
2. O método
Desta estrutura da nova evangelização deriva também o
método justo. Sem dúvida, devemos usar de modo razoável os métodos modernos para
nos fazer ouvir, ou melhor: para tornar acessível e compreensível a voz do
Senhor... Não procuramos escuta para nós não queremos aumentar o poder e a
extensão das nossas instituições, mas desejamos servir o bem das pessoas e da
humanidade dando espaço Àquele que é a Vida. Esta expropriação do
próprio eu oferecendo Cristo para salvação dos homens, é condição
fundamental do verdadeiro empenho pelo evangelho. "Vim em nome de Meu Pai e não
Me recebestes, mas se vier outro, em seu próprio nome, recebêlo-eis" (Jo 5, 43).
O sinal distintivo do Anticristo é falar em seu nome. O sinal do Filho é a sua
comunhão com o Pai. O Filho introduz-nos na comunhão trinitária, no círculo do
eterno amor, cujas pessoas são "relações puras", o acto puro do doar-se e
receber-se. O desígnio trinitário visível no Filho, que não fala em seu nome
mostra a forma de vida do verdadeiro evangelizador aliás, evangelizar não é
simplesmente uma forma de falar, mas uma forma de viver: viver em escuta e
fazer-se voz do Pai. "Não falará de Si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido",
diz o Senhor acerca do Espírito Santo (cf. Jo 16, 13). Esta forma cristológica e
pneumatológica da evangelização é simultaneamente uma forma eclesiológica: o
Senhor e o Espírito constroem a Igreja, comunicamse na Igreja. O anúncio de
Cristo, o anúncio do reino de Deus pressupõe escuta da sua voz na voz da Igreja.
"Não falará de Si mesmo" significa: falar na missão da Igreja... Desta lei da
expropriação derivam consequências muito práticas. Todos os métodos razoáveis e
moralmente aceitáveis devem ser estudados - é um dever fazer uso destas
possibilidades de comunicação. Mas as palavras e toda a arte da comunicação não
podem conquistar a pessoa humana naquela profundidade, à qual deve chegar o
Evangelho. Há alguns anos li a biografia de um óptimo sacerdote do nosso século,
Pe. Didimo, pároco de Bassano del Grappa (Itália). Nas suas notas encontram-se
palavras de ouro, fruto de uma vida de oração e de meditação. A respeito de nós
diz Pe. Didimo: "Jesus pregava de dia, de noite rezava". Com esta breve notícia,
ele queria dizer: Jesus devia obter de Deus os discípulos. Isto é válido sempre.
Nós não podemos ganhar os homens. Devemos obtê-los de Deus para Deus. Todos os
métodos são vazios sem o fundamento da oração. A palavra do anúncio deve estar
sempre imersa numa intensa vida de oração. Devemos dar um ulterior passo. Jesus
pregava de dia, de noite rezava o que não é tudo. A sua vida inteira foi como
mostra de maneira admirável o evangelho de São Lucas um caminho rumo à cruz,
ascensão rumo a Jerusalém. Jesus não redimiu o mundo com palavras bonitas, mas
com o seu sofrimento e a sua morte. Esta sua paixão é a fonte inexaurível de
vida para o mundo; a paixão dá força à sua palavra. O próprio Senhor estendendo
e ampliando a parábola do grão de mostarda formulou esta lei de fecundidade na
parábola do grão que, ao cair na terra, morre (cf. Jo 12, 24). Esta lei também é
válida até ao fim do mundo e é juntamente com o mistério do grão de mostarda
fundamental para a nova evangelização. Toda a história o demonstra. Seria fácil
demonstrar isto na história do cristianismo. Desejo recordar aqui apenas o
início da evangelização na vida de São Paulo. O ucesso da sua missão não foi o
resultado de uma grande arte retórica ou de prudência pastoral; a fecundidade
estava relacionada com o sofrimento, com a comunhão na paixão de Cristo (cf. 1
Cor 2, 1-5; 2 Cor 5, 7; 11, 10 s; 11, 30; Gl 4, 12-14). "Nenhum sinal será dado
a não ser o sinal do profeta Jonas", disse o Senhor. O sinal de Jonas é Cristo
crucificado são as testemunhas, que completam o "que falta aos sofrimentos de
Cristo" (Cl 1, 24). Em todos os períodos da história verificou-se sempre de novo
as palavras de Tertuliano: o sangue dos mártires é semente. Santo Agostinho diz
o mesmo de uma maneira muito bonita, ao interpretar Jo 21, onde a profecia do
martírio de Pedro e o mandato de apascentar, ou seja, a instituição da sua
primazia, estão intimamente relacionados. Santo Agostinho comenta o texto de Jo
21, 16 da seguinte forma: "Apascenta as minhas ovelhas", o que significa, sofre
pelas minhas ovelhas (Sermo Guelf. 32; PLS 2, 640). Uma mãe não pode dar luz a
uma criança sem sofrer. Qualquer parto requer sofrimento, é dor, e tornar-se
cristão é um parto. Digamo-lo mais uma vez com palavras do Senhor: o reino de
Deus exige violência (cf. Mt11, 12; Lc 16, 16), mas a violência de Deus é o
sofrimento, é a cruz. Não podemos dar a vida a outros, sem dar a nossa vida. O
processo de expropriação acima mencionado é a forma concreta (expressa de muitas
formas diferentes) de doar a própria vida. E pensamos na palavra do Salvador:
"...quem perder a sua vida por Mim e pelo Evangelho, salvá-la-á..." (Mc 8,
36).
II. Os conteúdos essenciais da nova
evangelização
1.
Conversão
No que se refere aos conteúdos da nova evangelização
deve-se ter presente em primeiro lugar a inseparabilidade do Antigo e do Novo
Testamento. O conteúdo fundamental do Antigo Testamento está resumido na
mensagem de João Baptista: Convertei-vos! Não se acede a Jesus sem o Baptista;
não existe possibilidade de chegar a Jesus sem responder ao apelo do precursor;
aliás: Jesus assumiu a mensagem de João na síntese da sua própria pregação:
convertei-vos e acreditai no Evangelho (cf. Mc 1, 15). A palavra grega
converter-se significa: reconsiderar pôr em questão o próprio modo de viver e o
comum; deixar entrar Deus nos critérios da própria vida; não julgar simplesmente
de acordo com as opiniões correntes. Converter-se significa por conseguinte: não
viver como vivem todos, não fazer como fazem todos, não sentir-se justificados
em acções duvidosas, ambíguas, perversas simplesmente porque há quem o faça;
começar a ver a própria vida com os olhos de Deus, portanto procurar o bem,
mesmo se não é agradável; não apostar no juízo da maioria, mas no juízo de Deus
por outras palavras: procurar um novo estilo de vida, uma vida nova. Tudo isto
não implica um moralismo; a limitação do cristianismo à moralidade perde de
vista a essência da mensagem de Cristo: o dom de uma nova amizade, o dom da
comunhão com Jesus e por conseguinte com Deus. Quem se converte a Cristo não
pretende criar uma autonomia moral própria, não pretende construir com as
próprias forças a sua bondade. "Conversão" (Metanoia) significa precisamente o
contrário: abandonar a autosuficiência, descobrir e aceitar a própria indigência
indigência dos outros e do Outro, do seu perdão, da sua amizade. A vida não
convertida é autojustificação (não sou pior do que os outros); a conversão é a
humildade de se confiar ao amor do Outro, amor que se torna medida e critério da
minha própria vida. Devemos ter também presente o aspecto social da conversão.
Sem dúvida, a conversão é em primeiro lugar um acto pessoalíssimo, é
personalização. Eu separo-me da fórmula "viver como todos" (já não me sinto
justificado pelo facto de que todos fazem o que eu faço) e encontro perante Deus
o meu próprio eu, a minha responsabilidade pessoal. Mas a verdadeira
personalidade também é sempre uma nova e mais profunda socialização. O eu
abre-se de novo ao tu, em toda a sua profundidade, e desta forma nasce um novo
Nós. Se o estilo de vida difundido no mundo implica o perigo da
despersonalização, do viver não a minha vida mas a vida dos outros, na conversão
deve realizar-se um novo Nós do caminho comum com Deus. Ao anunciar a conversão
também devemos oferecer uma comunidade de vida, um espaço comum do novo estilo
de vida. Não se pode evangelizar só com palavras; o evangelho cria vida, cria
comunidade de caminho; uma conversão meramente individual não tem
consistência...
2. O Reino de
Deus
Na chamada à conversão está implícito como sua
condição fundamental o anúncio do Deus vivo. O teocentrismo é fundamental na
mensagem de Jesus e também deve ser o centro da nova evangelização. A
palavra-chave do anúncio de Jesus é: Reino de Deus. Mas Reino de Deus não é uma
coisa, uma estrutura social ou política, uma utopia. O Reino de Deus é Deus.
Reino de Deus significa:
Deus existe. Deus vive. Deus está presente e age no
mundo, na nossa na minha vida. Deus não é uma remota "causa última", Deus não é
o "grande arquitecto" do deísmo, que construiu a máquina do mundo e agora se
encontra fora.
Ao contrário: Deus é a realidade mais presente e
decisiva em qualquer acto da minha vida, em todos os momentos da história. Na
sua conferência de despedida da cátedra na universidade de Monastério, o teólogo
J. B. Metz disse coisas que dele não se esperavam. No passado, Metz ensinou-nos
o antropocentrismo o verdadeiro acontecimento do cristianismo teria sido a
viragem antropológica, a secularização, a descoberta do secularismo no mundo.
Depois, ensinou-nos a teologia política o carácter político da fé; depois a
"memória perigosa"; finalmente a teologia narrativa. Depois deste caminho longo
e difícil hoje dizemos: o verdadeiro problema do nosso tempo é a "crise de
Deus", a ausência de Deus, camuflada por uma religiosidade vazia. A teologia
deve voltar a ser realmente “teo-logia”, um falar de Deus e com Deus. Metz tem
razão: para o homem, o "unum necessarium" é Deus. Tudo muda se Deus está ou não
está presente. Infelizmente também nós cristãos vivemos muitas vezes como se
Deus não existisse ("si Deus non daretur"). Vivemos segundo o slogan: Deus não
está presente, e se está, não tem incidência. Por isso a evangelização deve,
antes de mais, falar de Deus, anunciar o único Deus verdadeiro: o Criador o
Santificador o Juiz (cf. Catecismo da Igreja Católica). Também neste ponto se
deve ter presente o aspecto prático. Deus não se pode dar a conhecer unicamente
com as palavras. Não se conhece uma pessoa, se não sabemos directamente nada
dela. Anunciar Deus é introduzir na relação com Deus: ensinar a rezar. A oração
é fé em acto. E só na experiência da vida com Deus se manifesta também a
evidência da sua existência. Eis por que são tão importantes as escolas de
oração, de comunidade de oração. Existe complementaridade entre oração pessoal
("no próprio quarto", sozinhos perante os olhos de Deus), oração comum "para
litúrgica" ("religiosidade popular") e oração litúrgica. Sim, a liturgia é, em
primeiro lugar, oração; a sua especificidade consiste no facto que o seu sujeito
primário não somos nós (como na oração privada e na religiosidade popular), mas
o próprio Deus a liturgia é actio divina, Deus age e nós
respondemos à acção divina. Falar de Deus e falar com Deus são duas acções que
devem andar sempre juntas. O anúncio de Deus orienta para a comunhão com Deus na
comunhão fraterna, fundada e vivificada por Cristo. Portanto a liturgia (os
sacramentos) não é um tema paralelo à pregação do Deus vivo, mas a concretização
da nossa relação com Deus. Neste contexto, seja-me permitida uma observação
geral sobre a questão litúrgica. O nosso modo de celebrar a liturgia com
frequência é demasiado racional. A liturgia torna-se ensinamento, cujo critério
é: fazer-se compreender a consequência é com frequência a banalização do
mistério, o prevalecer das nossas palavras, a repetição das fraseologias que
parecem mais acessíveis e mais agradáveis ao povo. Mas isto é um erro não só
teológico, mas também psicológico e pastoral. A onda do esoterismo, a difusão de
técnicas asiáticas de distensão e auto-esvaziamento mostram que nas nossas
liturgias falta algo. Precisamente no nosso mundo de hoje precisamos do
silêncio, do mistério supraindividual, da beleza. A liturgia não é invenção do
sacerdote celebrante ou de um grupo de especialistas; a liturgia (o "rito")
cresceu num processo orgânico ao longo dos séculos, leva em si o fruto da
experiência de fé de todas as gerações. Mesmo se os participantes talvez não
entendam todas as palavras, compreendem o significado profundo, a presença do
mistério, que transcende todas as palavras. O celebrante não é o centro da acção
litúrgica; o celebrante não está em frente do povo em seu nome não fala se si
nem para si, mas "in persona Christi". Não contam as capacidades pessoais do
celebrante, mas unicamente a sua fé, na qual se Cristo se torna transparente.
"Ele deve crescer e eu diminuir" (Jo 3, 30).
3. Jesus
Cristo
Com esta reflexão o tema Deus já se alargou e
concretizou no tema Jesus Cristo: só em Cristo e através de Cristo o tema Deus
se torna realmente concreto: Cristo é Emanuel, o Deus connosco a concretização
do "Eu sou", a resposta ao Deísmo. Hoje é grande a tentação de reduzir Jesus
Cristo, o único filho de Deus a um Jesus histórico, a um homem puro. Não se nega
necessariamente a divindade de Jesus, mas com certos métodos destila-se da
Bíblia um Jesus à nossa medida, um Jesus possível e compreensível dentro dos
parâmetros da nossa historiografia. Mas este "Jesus histórico" é inatural, a
imagem dos seus autores e não a imagem do Deus vivo (cf. 2 Cor 4, 4 s.; Cl 1,
15). O Cristo da fé não é um mito; o chamado Jesus histórico é uma figura
mitológica, auto-inventada pelos diferentes intérpretes. Os duzentos anos de
história de "Jesus histórico" reflectem fielmente a história das filosofias e
das ideologias deste período. No âmbito desta conferência, não posso tratar os
conteúdos do anúncio do Salvador. Desejaria brevemente mencionar dois aspectos
importantes. O primeiro é o seguimento de Cristo. Cristo oferece-se como caminho
para a minha vida. Seguimento de Cristo não significa: imitar o homem Jesus. Uma
tentativa como esta falha necessariamente seria um anacronismo. O seguimento de
Cristo tem uma meta mais alta: assimilar-se a Cristo, isto é, alcançar a união
com Deus. Estas palavras talvez soem mal aos ouvidos do homem moderno. Mas na
realidade todos temos sede do infinito: de uma liberdade infinita, de uma
felicidade sem limites. Toda a história das revoluções dos últimos dois séculos
só se explica desta forma. A droga explica-se assim. O homem não se contenta com
soluções abaixo do nível da divinização. Mas todos os caminhos oferecidos pela
"serpente" (Gn 3, 5), que significa pela sabedoria mundana, falham. O único
caminho é a comunhão com Cristo, realizável na vida sacramental. Seguimento de
Cristo não é um assunto de moral, mas um tema "místico" um conjunto de acção
divina e de resposta da nossa parte. Desta forma encontramos presente no tema
seguimento o outro centro da cristologia, que desejaria mencionar: o mistério
pascal a cruz e a ressurreição. Nas reconstruções do "Jesus histórico"
normalmente o tema da cruz não tem significado. Numa interpretação "burguesa"
torna-se um acidente em si evitável, sem valor teológico; numa interpretação
revolucionária torna-se a morte heróica de um rebelde. Mas a verdade é outra. A
cruz pertence ao mistério divino é expressão do seu amor até ao fim (cf. Jo 13,
1). O seguimento de Cristo é participação da sua cruz, unir-se ao seu amor, à
transformação da nossa vida, que se torna nascimento do homem novo, criado à
imagem de Deus (cf. Ef 4,24). Quem omite a cruz, omite a essência do
cristianismo (cf. 1 Cor 2, 2).
4. A vida
eterna
Um último elemento central de qualquer evangelização
autêntica é a vida eterna. Hoje devemos anunciar a fé com renovado vigor na vida
quotidiana. Neste ponto, desejaria mencionar apenas um aspecto da pregação de
Jesus que hoje, muitas vezes, é negligenciado: o anúncio do Reino de Deus é o
anúncio do Deus presente, do Deus que nos conhece, nos ouve; do Deus que entra
na história, para fazer justiça. Portanto, esta pregação é também anúncio do
juízo, anúncio da nossa responsabilidade. O homem não pode fazer ou deixar de
fazer o que lhe apetece. Ele será julgado. Deve prestar contas. Esta certeza é
válida tanto para os poderosos como para os simples. Onde ela é honrada, são
delineados os limites de qualquer poder deste mundo. Deus faz justiça, e só ele
o pode fazer por último. Nós consegui-lo-emos tanto mais, quanto mais formos
capazes de viver sob o olhar de Deus e de comunicar ao mundo a verdade do juízo.
Desta forma, o artigo de fé do juízo, a sua força de formação das consciências,
é um conteúdo central do Evangelho e é deveras uma Boa Nova. E também o é para
todos os que sofrem sob a injustiça do mundo e procuram a justiça. Compreende-se
desta forma o nexo entre o Reino de Deus e os "pobres", os que sofrem e todos
aqueles dos quais falam as bem-aventuranças do sermão da montanha. Eles são
protegidos pela certeza do juízo, pela certeza que existe a justiça. Eis o
verdadeiro conteúdo do artigo sobre o juízo, sobre Deus-juiz: há justiça. As
injustiças do mundo não são a última palavra da história. Existe uma justiça. Só
quem não quer que haja justiça, se pode opor a esta verdade. Se tomarmos a sério
o juízo e a seriedade da responsabilidade que disso nos advém, compreendemos bem
o outro aspecto deste anúncio, isto é, a redenção, o facto de que na cruz Jesus
assume os nossos pecados; que o próprio Deus na paixão do Filho se torna
advogado de nós, pecadores, e desta forma torna possível a penitência, a
esperança para o pecador arrependido, esperança expressa maravilhosamente nas
palavras de São João: diante de Deus, tranquilizaremos o nosso coração,
independentemente do que eles nos reprova. "Deus é maior que os nossos corações
e conhece todas as coisas" (1 Jo 3, 20). A bondade de Deus é infinita, mas não
devemos reduzir esta bondade a uma pieguice afectada sem verdade. Só acreditando
no justo juízo de Deus, só tendo fome e sede de justiça (cf. Mt 5, 6) é que
abrimos o nosso coração, a nossa vida à misericórdia divina. Vê-se: não é
verdade que a fé na vida eterna torna insignificante a vida terrena. Pelo
contrário: só se a medida da nossa vida for a eternidade, também a vida na terra
é grande e o seu valor é imenso. Deus não é o concorrente da nossa vida, mas a
garantia da nossa grandeza. Desta forma voltamos ao ponto de partida: Deus. Se
considerarmos bem a mensagem cristã, não falamos de muitas coisas. Na realidade,
a mensagem cristã é muito simples. Falamos de Deus e do homem e, desta forma,
dizemos tudo.
Intervenção do (então)
Cardeal Joseph Ratzinger durante o
Congresso dos
Catequistas e Professores de Religião,
10 de Dezembro de
2000
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