1. Novos percursos se abrem, e é aqui que se inicia o Evangelho do Domingo II da Páscoa (João 20,19-31), que o Papa João Paulo II, em 30 de Abril do ano 2000, consagrou como «Domingo da Divina Misericórdia». Os discípulos estão num lugar, com as portas fechadas, por medo dos judeus. O Ressuscitado, vida nova e modo novo de estar presente, que nada nem ninguém pode reter, vem e fica no MEIO deles, o lugar da Presidência, e saúda-os: «A paz convosco!». Mostra-lhes as mãos e o lado, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, e agrafa-os à sua missão: «Como o Pai me enviou, também Eu vos envio». O envio dele está no tempo perfeito (é para sempre): está sempre em missão; o nosso está no presente, e passa. O presente da nossa missão aparece, portanto, agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem ela e sem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Ele está connosco todos os dias (cf. Mateus 28,20). É-nos dito que os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem (ideîn) o Senhor. Tal como o Outro Discípulo, também eles vêm com um olhar histórico (tempo aoristo) a identidade do Senhor. O sopro de Jesus sobre eles é o sopro criador (emphysáô), com o Espírito, para a missão frágil-forte do Perdão. Este sopro só aparece aqui em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma bela ponte para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (naphah TM / emphysáô LXX) criador de Deus no rosto do homem.
2. O narrador informa-nos logo a seguir que, afinal, Tomé, chamado Gémeo, não estava com eles quando veio Jesus. Mas os outros dez diziam-lhe continuadamente (imperfeito de duração) com a mesma linguagem da Madalena, mas no plural: «Vimos (heôrákamen) o Senhor!» (João 20,25). Portanto, também eles são testemunhas, pois viram e continuam a ver o Senhor, de acordo com o tempo perfeito do verbo grego. Mas Tomé quer tudo controlado, ponto por ponto, e refere: «Se eu não vir com um olhar histórico (tempo aoristo) nas suas mãos a marca dos cravos, e não meter o meu dedo na marca dos cravos e meter a minha mão no seu lado, não acreditarei» (João 20,25).
3. Novo desarme: oito dias depois, estavam outra vez os discípulos com as portas fechadas (mas o medo já não é mencionado), e Tomé estava com eles. Veio Jesus, ficou no MEIO, saudou-os com a paz, e dirigiu-se logo a Tomé desta maneira: «Traz o teu dedo aqui e vê com um olhar histórico (tempo aoristo) as minhas mãos, e traz a tua mão e mete-a no meu lado, e não sejas incrédulo, mas crente!» (João 20,27). Aí está Tomé adivinhado e desarmado. Também ele podia ter pensado: «E como é que ele sabia que eu queria fazer aquilo?». Tomé cai aqui, adivinhado e antecipado, precedido por Aquele que nos precede sempre. Não quer tirar mais provas. Diz de imediato: «Meu Senhor e meu Deus!» (João 20,28), uma das mais belas profissões de fé de toda a Escritura. E Jesus diz para ele: «Porque me viste e continuas a ver (heôrakás), tempo perfeito de horáô, acreditaste e continuas a acreditar (pepísteukas), tempo perfeito de pisteúô; felizes os que, não tendo visto com um olhar histórico (tempo aoristo), acreditaram!» (João 20,29), tempo aoristo. Esta felicitação é para nós.
4. Notável o percurso dos Discípulos: fechados e com medo, viram Jesus entrar e ficar no MEIO deles, sem que as portas e as paredes constituíssem obstáculo. Trocaram o medo pela alegria, e também eles começaram a ver de forma continuada o Senhor e a dizê-lo de forma continuada. Notável e exemplar para nós o percurso de Tomé, chamado Gémeo: não estava com a comunidade, tão-pouco aceitou o seu testemunho; queria provas. Mas quando veio Jesus e o adivinhou, precedendo-o e presidindo-o, entregou-se completamente! Tomé, chamado Gémeo! Irmão gémeo! Irmão gémeo de quem? Meu e teu, assim pretende o narrador. De vez em quando, também nós não estamos com a comunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. Por vezes, também duvidamos e queremos provas. Como Tomé, chamado Gémeo. Salta à vista que também devemos estar com a comunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. E professar convictamente a nossa fé no Ressuscitado, que nos preside (no MEIO) e nos precede sempre. Como a Tomé, chamado Gémeo.
5. A lição do Livro dos Actos dos Apóstolos (4,32-35, mas ver também 2,42-47 e 5,12-16) deste Domingo II da Páscoa é outra vez soberba. Trata-se de uma visita guiada ao Cenáculo, a primeira Catedral da Igreja nascente – mas com ramificações em todas as casas, em todos os corações –, bem assente em quatro colunas: o ensino dos Apóstolos, a comunhão fraterna, a fracção do pão e a oração. Com a boca cheia de louvor, os olhos de graça, as mãos de paz e de pão, as entranhas de misericórdia, a comunidade bela crescia, crescia, crescia. Não admira. Era tão jovem, leve e bela, que as pessoas lutavam por entrar nela!
6. Nascer de Deus, amar a Deus e o Filho Unigénito de Deus, amar no Filho os filhos de Deus, é a lição da Primeira Carta de São João 5,1-6. O critério é: se nascemos de Deus, então somos filhos de Deus, e, sendo filhos de Deus, somos irmãos. E, se nascemos de Deus, também o amor que nos vincula aos irmãos é de Deus. Amar a Deus é, então, o critério último da fé e da caridade. A vida de Deus em nós, amar como Deus nos ama, permanece, portanto o único critério verdadeiro. Na Primeira Carta de São João 4,20-21, tínhamos anotado o critério de que o nosso amor a Deus é verificável no nosso amor ao próximo. Mas São Paulo adverte-nos com sabedoria que o amor ao próximo pode fingir-se, pois podemos dar todos os nossos bens aos pobres, e não ter a caridade verdadeira (1 Coríntios 13,3). Neste sentido, diz acertadamente São Máximo Confessor que «a Páscoa gera a fé e a fé gera o amor». A misericórdia é chama divina com que devemos acender e purificar o nosso coração.
7. Em tudo e sempre nos precede o nosso bom Deus com a iniciativa do seu amor primeiro e misericordioso.
António Couto
É bom ter uma paróquia onde só são proferidos discursos do Papa Bento XVI e de D. António Couto. Pelo menos assim dá para estarmos atualizados...
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