1. O Evangelho deste Domingo II (Marcos 1,1-8) põe em cena uma das grandes figuras do Advento: João Baptista. Não, não vive num palácio, não ostenta poder e riquezas, não é dono de nada nem de ninguém, não fala de si mesmo. É um servo cuja alegria é servir Aquele-que-Vem, a sua casa é o deserto, o seu dizer não é vangloriar-se, é dizer Outro. Veste-se rudemente com o que o deserto dá, o seu alimento frugal recebe-o do deserto, isto é, da mão de Deus. João aparece retratado como Elias (Marcos 1,6; 2 Reis 1,8). É um homem essencial, recto, puro e duro como um tronco. Não, não é um homem-cana. A cana é oca, e pode ser também cana rachada (Isaías 42,3) e agitada pelo vento (Mateus 11,7).
2. Nunca faltaram e nunca faltarão, na humana paisagem, homens-cana em abundância. Talvez o sejamos nós também. É, então, a nós também que João Baptista chama ao deserto, ao essencial, à confissão dos pecados, a alijar a carga inútil de mentiras, devaneios e vaidades.
3. O deserto ensina o essencial. No deserto aprende-se o essencial. Não há por onde fingir, mentir, fugir. Somos mesmo efémeros, pobres, indigentes, dependentes. O deserto devolve-nos a nossa verdadeira identidade alteritária. No deserto vê-se mesmo Deus vir em nosso auxílio. E aprende-se a lição de que somos irmãos. Entram em curto-circuito os nossos circuitos fechados, egolátricos, egocêntricos.
4. João é o homem do deserto, e aponta o essencial. Indica Aquele-que-Vem. Cuja vocação é vir e ficar no meio de nós. João é provisório. Lava com água as nossas banalidades. Aquele-que-Vem é definitivo, Primeiro e Último, dá o Espírito Santo sem medida, a vida divina, admite à comunhão com Deus. João vive em função d’Aquele-que-Vem. O que João faz [«chama à conversão para o perdão dos pecados] é em ordem ao Fazer novo e criador d’Aquele-que-Vem com o Espírito Santo, que tem e dá a Vida verdadeira.
5. A citação dita do profeta Isaías (Marcos 1,2) é, afinal, uma composição de Malaquias 3,1 e de Isaías 40,3. Em Malaquias 3,1, lemos assim, com Deus a falar em primeira pessoa: «Vou enviar o meu mensageiro, e preparará o meu caminho diante de mim…». O próprio Malaquias dirá mais à frente (3,23) que este mensageiro é Elias. O texto de Marcos actualiza a citação, mudando dois pronomes, para mostrar a importância d’Aquele-que-vem: «Vou enviar o meu mensageiro diante de ti, o qual preparará o teu caminho». Vê-se bem que continua a ser o mensageiro de Deus (meu), que é enviado, porém, para preparar o caminho de Jesus (teu), adiante de Jesus (ti). E este mensageiro é agora João Baptista, que cumpre, todavia, a função de Elias (Marcos 9,13; Mateus 11,14). A citação de Isaías 40,3 aparece sem alteração no texto de Marcos 1,3: «Voz do que clama no deserto: “Preparai o caminho do Senhor”», em que a voz é João, e o caminho do Senhor é o caminho d’Aquele-que-Vem, Jesus, o Filho de Deus.
6. «Caminho santo [Via Sacra]: Ele mesmo andará nesse caminho» (Isaías 35,8). O caminho do Advento não é tanto o nosso caminho para Deus. É mais, muito mais, e aqui está a surpresa boa, desconcertante e transformante, o caminho de Deus para nós! Sim, Deus vem visitar-nos! Deus Vem!
7. Por isso, «Consolai, consolai o meu povo, diz Deus,/ falai ao coração de Jerusalém», diz Deus (Isaías 40,1-2). «Sobe a uma alta montanha, EVANGELISTA (mebasseret) Sião,/ levanta com força a tua voz, EVANGELISTA (mebasseret) Jerusalém;/ levanta-a, não temas,/ diz às cidades de Judá:/ “Eis o vosso Deus,/ eis o Senhor YHWH!/ Com poder Ele VEM,/ no seu braço a soberania para Ele,/ eis o Seu salário com Ele,/ e a Sua recompensa diante d’Ele./ Como um pastor o seu rebanho apascenta,/ com o Seu braço, reúne-o,/ no Seu colo os cordeiros carrega,/ as ovelhas que amamentam conduz com carinho» (Isaías 40,9-11).
8. O texto de Isaías documenta a fantástica passagem do arauto masculino (mebasser) para o feminino (mebasseret), designando com esse nome a própria Cidade de Sião ou Jerusalém personificada e EVANGELIZADORA das suas cidades irmãs. Esta imagem tem sido vista por alguns comentadores como grotesca. Mas é, na verdade, o que o texto diz. Cidade EVANGELIZADA, que se transforma naturalmente em EVANGELIZADORA. Estamos nas nascentes do termo «Evangelho». E vê-se também já, com suficiente clareza, que a Notícia é Deus que vem! Não, Deus não salva o seu povo com programas feitos à distância nem com concepções teológicas friamente administradas desde cima. Deus vem!
9. Portanto, adverte S. Pedro (2 Pedro 3,8-14), o tempo de Deus não é o nosso tempo. Um dia, para Ele, é como mil anos,/ mil anos como dia (2 Pedro 3,8; cf. Salmo 90,4). É a paciência de Deus que espera a nossa conversão. O nosso tempo é dado, concedido para alijarmos futilidades que nos pesam e nos prendam. Passarão. O Advento reclama de nós vestidos novos, dado que novos céus e nova terra surgirão (2 Pedro 3,13), habitados por filhos e irmãos, que entendem a nova linguagem da paz, justiça, fidelidade, mansidão, misericórdia (Salmo 85).
António Couto
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